Eu já escrevi diversos textos sobre os potenciais tratamentos para a COVID-19*. Neles expliquei sobre diferentes classes de compostos candidatos conforme os diferentes alvos. No entanto, essa série de textos aborda aspectos mais práticos, ou seja, da triagem de fármacos antivirais.
No texto de hoje trago uma visão diferente, a respeito das particularidades dos vírus que dificultam o desenvolvimento dos fármacos antivirais.
Dado que os processos metabólicos virais estão atrelados aos dos seus hospedeiros, um fator que dificulta a ação dos fármacos sobre os vírus, é a seletividade. Ainda que algumas proteínas (e enzimas) sejam especificas dos vírus, e representem alvos terapêuticos, os agentes antivirais são ativos apenas durante a replicação.
Na prática, isso significa que o tratamento só pode ser administrado em estágios mais avançados das doenças. Nos estágios iniciais, cujo tratamento seria mais efetivo, a infecção, geralmente, é assintomática.
Mesmo assim, dada a especificidade das enzimas virais, muitos fármacos agem sobre elas, inibindo sua ação. Um exemplo: oseltamivir e zanamivir são inibidores da neuraminidase.
A neuraminidase é uma enzima que cliva ligações glicosídicas presentes no ácido siálico, carboidrato presente em células humanas, de animais, plantas e também de microrganismos.
Essa enzima se faz importante no momento da dispersão das novas partículas virais de uma célula infectada, ou seja, ela auxilia no processo de propagação do vírus no hospedeiro.
É importante mencionar que embora as proteínas sejam alvos úteis a antivirais, mutações frequentemente causam variações na expressão proteínas virais, facilitando o escape dos vírus à ação dos medicamentos.
Dessa maneira, a ação sobre proteínas não é o único mecanismo. Os fármacos podem agir como:
- análogos de nucleosídeos e impedir a replicação viral;
- antagonistas de receptores celulares, dessa forma, impedindo a ligação do vírus;
- imunomoduladores.
Independentemente do modo de ação de um fármaco, um fator determinante no desenvolvimento de um antiviral é o conhecimento a respeito da ação do vírus no hospedeiro e, é claro, da própria biologia do vírus. Isso significa que a pesquisa básica é fundamental (A BASE!) para o desenvolvimento de processos biotecnológicos.
Isso ficou provado na pandemia de SARS-CoV-2. Pesquisas prévias, envolvendo outros coronavírus, foram fundamentais para os pesquisadores iniciarem novas pesquisas a partir de fundamentos consolidados. Novas ideias só podem surgir a partir de modelos (até mesmo dos ruins!).
Quando o SARS-CoV emergiu, por exemplo, eram conhecidas apenas duas espécies capazes de infectar humanos, HCoV-229E e HCoV-OC43. Isso “pegou” os pesquisadores de surpresa, especialmente os envolvidos no desenvolvimento de antivirais. Por outro lado, quando o SARS-CoV-2 surgiu, já existiam muitos dados referentes à SARS-CoV e MERS-CoV, facilitando as pesquisas.
Isso significa que as pesquisas de fármacos anti-SARS-CoV-2 começam com a análise de dados sobre a triagem de compostos para outros coronavírus (BOX 1). Esses vírus constituem um grupo bastante diverso, capazes de infectar diversos órgãos e uma ampla gama de espécies.
Entre os mais preocupantes, estão SARS-CoV e MERS-CoV, responsáveis pela SARS e MERS, respectivamente. Essas doenças apresentam uma alta mortalidade e alto potencial para causar epidemias.
Embora muitos compostos inibem a entrada e/ou a replicação desses vírus em culturas de células, ou modelos animais, a atividade não é reproduzida em humanos. Dessa forma, não existe tratamento efetivo para elas.
*links para os textos! https://www.facebook.com/drabiancaperes/photos/176007857315199 https://www.facebook.com/drabiancaperes/photos/178879937027991 https://www.facebook.com/drabiancaperes/photos/179205813662070 https://www.facebook.com/drabiancaperes/photos/179474603635191 https://www.facebook.com/drabiancaperes/photos/179740840275234 https://www.facebook.com/drabiancaperes/photos/180974073485244
BOX 1. A taxonomia dos coronavírus e SARS-CoV-2.
Todo organismo vivo (e os vírus!) são sujeitos a uma classificação taxonômica. Explicando de uma maneira simples, nada mais é do que uma forma de organizar o conhecimento e facilitar a pesquisa.
No caso dos coronavírus, estes são membros:
- do reino (na virologia o termo reino é usado para designar a classificação taxonômica mais alta) Riboviria (que inclui todos os vírus que utilizam a RNA polimerase RNA dependente ou RNA polimerase DNA dependente);
- da ordem Nidovirales (vírus envelopados, de fita positiva que infectam vertebrados e invertebrados),
- da subordem Cornidovirineae,
- da família Coronaviridae (que infectam anfíbios, aves e mamíferos),
- da subfamília Orthocoronavirinae (que infectam aves e mamíferos).
Essa subfamília divide-se em 4 gêneros: alfa, beta, gama e deltacoronavírus. Os gama e delta infectam aves, mas alguns infectam também mamíferos. Já os alfa e beta, infectam somente mamíferos, causando doença respiratória em humanos e gastroenterites em animais. Todos os que infectam humanos têm origem animal.
No gênero beta, existem 5 subgêneros, entre eles o sarbecovirus (que inclui vários vírus que infectam morcegos e alguns vírus que infectam pangolins). Por fim, temos as espécies desse subgênero: SARS-CoV, SARS-CoV-2, RaTG13, etc.
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