Durante meu mestrado e doutorado, visitei uma estação de tratamento de água para colher amostras de água e de biofilmes pré-formados. Meu objetivo era identificar quais microrganismos eram recuperados, por análises de cultivo e sequenciamento de DNA, ao longo de toda a estação.
Será que os microrganismos patogênicos que chegam nas estações estavam sendo removidos? Será que os que ficavam presos nos biofilmes estavam viáveis (vivos)? Os biofilmes são estruturas que sabidamente protegem os microrganismos de agentes antimicrobianos.
Se isso estivesse acontecendo, esses microrganismos poderiam sair ilesos dos biofilmes e, assim, recontaminar a água parcialmente tratada ou já em fase final de tratamento? Essas eram algumas das perguntas que queria responder com o projeto.
Embora nesse contexto o biofilme tenha um viés prejudicial, nem sempre isso ocorre. Nesse artigo vou te mostrar como os biofilmes podem auxiliar no tratamento de esgoto.
Mas o que é um biofilme?
São aglomerados de células unidas por uma matriz composta principalmente por polissacarídeos (açúcares) produzida pelos próprios microrganismos formadores do biofilme. Estes podem estar aderidos OU NÃO ao substrato (superfície que proporcione a adesão dos microrganismos).
Representam um modo de vida amplamente distribuído e próspero. Inclusive, acredita-se que os biofilmes sejam o modo de vida padrão (normal) já que o crescimento apresentado por microrganismos cultivados em laboratório resulta de condições padronizadas e ideais. Bastante diferente das observadas em ambientes naturais na qual as condições são geralmente limitantes (nutrientes, condições físico-químicas, predadores).
A matriz presente nos biofilmes proporciona a emergência (surgimento) de diversas características que não são observadas em estudos de células de vida livre. E são essas que tornam os biofilmes tão especiais.
Além da proteção contra agentes antimicrobianos, as matrizes promovem a resistência quanto à dessecação, auxilia na captação de nutrientes e facilitam a interação entre microrganismos, de modo a favorecer o metabolismo cooperativo, tão importante na degradação de compostos, como veremos adiante.
O tratamento de esgoto
Realizado devido à alta carga de matéria orgânica no esgoto, pretende diminuir esse teor. Também promove a remoção dos microrganismos patogênicos e potencialmente patogênicos que podem estar presentes nos efluentes e são prejudiciais à saúde.
E qual a melhor forma de fazer isso? Ou melhor, qual a forma mais econômica e eficiente? Utilizar os próprios organismos presentes para ajudar a tratá-lo! Simples e efetivo, não é?
Em ambientes rurais, onde a demanda por tratamento é menor, uma fossa asséptica é suficiente. Essas são caixas interligadas e enterradas, de modo a manter uma temperatura que suporte o crescimento dos microrganismos degradadores, entre 15 e 25 °C.
Parece um contrassenso fazer crescer microrganismos, sendo que a ideia é diminuir a matéria orgânica para que ela não esteja disponível aos microrganismos. É só imaginar, porém, os danos do despejo de um esgoto não tratado na água, por exemplo.
O excesso de matéria orgânica pode causar a eutrofização, que acarreta diminuição do oxigênio na água, e prejudica aqueles que dele dependem para sobreviver (micro- e macrorganismos).
A grande sacada aqui é estimular os microrganismos certos. Lembrem-se também que, especialmente as bactérias patogênicas a humanos são adaptados a nossa temperatura corporal (37 °C). Além disso, esses patógenos estão bastante estressados nessas condições, já que diferem bastante das encontradas no hospedeiro; o que por si só dificulta o seu desenvolvimento.
É claro que o tratamento incompleto (sem desinfecção e outras etapas) não elimina os microrganismos patogênicos. Afinal eles podem sobreviver nessas temperaturas. Também podem voltar a crescer no ambiente em que esse efluente parcialmente tratado tenha sido disposto.
Sem contar que ainda tem os fungos que crescem bem em temperaturas ambientais, os protozoários que apresentam formas resistentes a condições estressantes.
Deixemos esse assunto para outro dia e voltemos aos biofilmes…
O biofilme no tratamento de esgoto
Agora imaginem uma grande cidade e todo o esgoto produzido. Esse tratamento simples não é suficiente, certo? A partir de agora mostrarei como os biofilmes são importantes e podem potencializar o tratamento dos efluentes.
Já nos primórdios do desenvolvimento das técnicas de tratamento de esgoto, surgiu a ideia de formar biofilmes sobre rochas presentes em um tanque bem grande. A estratégia é fornecer uma superfície de contato para o crescimento de microrganismos presentes no próprio esgoto que, então, interceptam a matéria orgânica e a degradam de forma aeróbia (na presença de ar). E assim surgiram os filtros biológicos.
A utilidade dos biofilmes não para por aí. Uma forma ainda mais potente de degradar a matéria orgânica é a aplicação do sistema de lodo ativado. Nesse caso, o esgoto é primeiramente aerado e depois passa para o tanque de sedimentação, onde forma o lodo de esgoto*.
Uma característica importante nesse processo é a formação de um biofilme do tipo suspenso, denominado floco, formado por uma bactéria do gênero Zooglea. Conforme este biofilme vai se desenvolvendo, protozoários, pequenos animais, fungos e bactérias filamentosas vão aderindo a ele.
Um passo essencial que auxilia a decantação, ao tornar o floco mais pesado. O tratamento não para por aí. Na verdade, depende do tipo de efluente e até mesmo da verba disponibilizada ao tratamento.
Novas pesquisas nesse campo
Discutimos até aqui, duas formas aeróbias de tratamento do esgoto. O filtro biológico percolador e o lodo ativado. Existe, porém, uma forma de digestão anaeróbia, bastante utilizado no Brasil, denominada digestor de lodo.
Entretanto, além da formação de metano como subproduto, ele gera um efluente com alta concentração de nitrogênio, pois se trata de um sistema simplificado e incompleto de tratamento. Lembram-se que comentei que as condições econômicas têm um grande peso na escolha das técnicas tratamento do esgoto?
Bom, o nitrogênio deve ser removido dos efluentes, por levar ao processo de eutrofização artificial, e, consequentemente, ao crescimento descontrolado de organismos. No entanto, o digestor de lodo não provê uma forma eficiente para sua remoção completa. E ao entender essa nova tecnologia desenvolvida por pesquisadores da USP você entenderá o porquê.
Eles desenvolveram um modelo de reator de baixo custo que consiste na formação de um biofilme sob uma espuma de poliuretano cuja natureza do próprio material, possibilita a formação de uma interface aerada e outra anaeróbia. Ou seja, com e sem oxigênio, respectivamente.
Na porção aeróbia é potencializado o processo de degradação de matéria orgânica e a atividade das bactérias nitrificantes que transformam a amônia em compostos biodisponíveis aos desnitrificantes.
Mas quem são os desnitrificantes e por que eles são importantes na remoção do nitrogênio?
Esses microrganismos são aqueles que transformam o nitrato em nitrogênio gasoso. Ao contrário do metano que é um gás estufa (produzido pelo método digestor de lodo), o gás hidrogênio é inofensivo ao meio ambiente e não requer a queima.
Lembrem-se! A desnitrificação é uma forma de respiração anaeróbia, em que o microrganismo utiliza o nitrato como aceptor final de elétrons, em vez do oxigênio. Ou seja, essa reação deverá acontecer na porção anaeróbia do reator.
O interessante é que as bactérias responsáveis por esse processo são anaeróbias facultativas, ou seja, podem crescer tanto na presença quanto ausência do oxigênio. Agora pensem comigo.
Se a respiração provê mais energia do que a fermentação (processo que ocorre na ausência do oxigênio), qual vocês acham que ela priorizará, caso o oxigênio esteja presente? A respiração, certo? Porém, com a priorização da respiração, o nitrogênio não será removido.
Oras, não é só o oxigênio que influencia o processo. A fonte de carbono remanescente no efluente também. Se a concentração está abaixo da requerida para a desnitrificação, ela não ocorre. Como dito, a desnitrificação é um tipo de respiração, e demanda fonte de matéria orgânica para oxidação.
Pense em como fazemos, nos alimentamos para ter energia para o desenvolvimento de outras funções, como respirar. O novo método, portanto, é como um ajuste fino entre a degradação da matéria orgânica na fase aeróbia até um ponto que ela ainda seja útil para a remoção dos compostos nitrogenados no lado anaeróbio.
Essa pode ser uma alternativa mais barata para uma degradação mais completa dos efluentes, já que, muitas vezes, é preciso adicionar matéria orgânica que possibilite a reação para remoção do nitrogênio e isso acaba encarecendo o processo.
*Uma curiosidade: posteriormente, uma porção desse lodo formado no tanque, retorna ao tanque de aeração para potencializar o tratamento. Por que isso? Porque o lodo mais antigo contém microrganismos em fase log de crescimento, a fase em que os microrganismos estão crescendo o mais rápido possível!
Em outras palavras, as bactérias já estão adaptadas aquelas condições e são, portanto, capazes de degradar mais rapidamente o lodo recém-formado.
Texto revisado por Lavinia Dal’Mas Romera
Referências
Citação do artigo:
Tonetti, Adriano Luiz et al. Desnitrificação em um sistema simplificado de tratamento de esgoto. Engenharia Sanitaria e Ambiental [online]. 2013, v. 18, n. 04 [Acessado 26 Julho 2022] , pp. 381–392. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1413-41522013000400010>. ISSN 1809–4457. https://doi.org/10.1590/S1413-41522013000400010.
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